domingo, 2 de março de 2008
José Caleia Rodrigues: O medo está a controlar os preços do petróleo
Com o barril de petróleo a subir acima dos 70 dólares, ouve-se frequentemente a palavra "crise", para descrever o panorama energético actual.
Para José Caleia Rodrigues, autor de dois livros sobre as questões do petróleo - um facto assinalável no mercado editorial português -, a palavra "crise" é mal utilizada. O problema em torno do preço do petróleo e da dependência das economias industrializadas prende-se com questões estruturais, e não de carácter passageiro, facto que justifica o título do seu último livro "Petróleo, Qual Crise?", publicado no mês passado. Vários constrangimentos no sector petrolífero, aliados à incessante procura do "ouro negro", estão na origem da subida dos preços, uma tendência que se irá manter e que ameaça alterar o equilíbrio geopolítico mundial. Os investimentos necessários no sector e o maior custo de extracção e de refinação irão repercutir-se no bolso dos consumidores. Para Portugal, muito dependente desta fonte energética e altamente ineficiente no seu consumo, os custos são muito elevados e impõem uma grande mudança em duas vertentes: para o Governo, no desenvolvimento da aposta em outras fontes de energia (como tem vindo já a suceder na eólica); para os consumidores, na revisão dos seus hábitos e modo de vida.
Em que medida a subida do preço do petróleo nos últimos dois anos não é mais um choque petrolífero, como o que se verificaram em 1973 ou 1979-80?
O petróleo voltou a subir desmesuradamente desde 1998, há seis anos. De 1998 para 2000, o preço duplicou. De 2000 para 2004, subiu mais de 60 por cento. Do meu ponto de vista não estamos a atravessar uma crise como a de 1973, uma vez que, por definição, as crises são passageiras. Por outro lado, devemos separar o sector do petróleo do mercado do petróleo. Não podemos falar de uma crise porque não há uma rotura de abastecimento do mercado. No sector do petróleo existem, sim, constrangimentos fortíssimos, que podem ser ultrapassados. O mercado é que tem factores exógenos que provocam todas estas variações. O petróleo, porque é um produto estratégico, está sujeito à pressão de vários factores, nomeadamente geopolíticos. Hoje, por exemplo, porque pode vir a acontecer um conflito entre dois países [Estados Unidos da América e Irão], o mercado entrou numa situação de pânico. Se só há constrangimentos no sector, se o petróleo continua a fluir, se o custo de transporte por oleoduto não está indexado à procura (é um custo fixo), os preços subiram por medo daquilo que possa vir a acontecer, não por razões ligadas ao sector.
Mas estes acontecimentos exteriores têm um grande impacto porque, do lado da oferta, o mercado percebe que o sector está muito pressionado...
Sim, o sector está muito apertado devido a vários constrangimentos, mas o petróleo bruto convencional ou petróleo leve [mais fácil de extrair e refinar] não está em eminente e evidente extinção, embora as reservas estejam a diminuir substancialmente. De acordo com os petrofísicos, desde a Pensilvânia e Baku [locais das primeiras descobertas de petróleo, nos EUA e no Azerbeijão respectivamente], ou seja, nos últimos 125 anos, consumiu-se um trilião de barris. Nos próximos 35 anos vamos consumir outro trilião de barris, caminhando a passos largos até à sua extinção. De reservas comprovadas, temos petróleo convencional por mais 50 a 60 anos.
Quais são esses "constrangimentos" que pressionam o sector?
Como constrangimentos temos um longo período de muito baixo investimento, em inventariação de novas descobertas, em extracção, em transporte e, sobretudo, em refinação. Só para inventariação de uma nova concessão, com ensaios sísmicos, já se gastam uns milhões de dólares. A extracção é feita muitas vezes em regiões sem segurança o que obriga as empresas petrolíferas a fazerem a sua própria segurança. Depois, temos o pouco investimento em transporte. Um oleoduto tem custos por quilómetro equivalentes a uma auto-estrada, são biliões de dólares para transportar o petróleo através de milhares de quilómetros. Por fim, há fortíssimos constrangimentos na refinação. Mesmo que queira aumentar a entrega de petróleo ao mercado, a capacidade de refinação instalada está hoje muito próxima da entrega total ao mercado, funcionando como um estrangulamento. Enquanto em 1982 estava a refinar à volta de 60 milhões de barris diários e tinha uma capacidade instalada no mundo para 80 milhões, hoje a produção chegou perto dos 80 milhões e a capacidade não aumentou. Temos, assim, constrangimentos do lado da oferta e, por outro lado, uma procura incessante.
Faz parte do grupo dos pessimistas que advogam a teoria do apocalipse com o esgotamento do petróleo, conhecida por "peak oil"?
Sou contra. Porque é um exercício matemático muito interessante e apenas isso. Pode prever-se um esgotamento em 50 anos do petróleo leve, inventariado em reservas prováveis, que até poderá esgotar-se em 30 ou 35 anos, mas temos ainda o recurso ao petróleo pesado, que será inesgotável por umas centenas de anos. Por outro lado, em aplicações em que não sejam absolutamente exigíveis os combustíveis fósseis, nós podemos ter recurso à electricidade a partir de outras fontes energéticas. O "peak oil" é um exercício de pessimismo alarmista.
Enquanto cartel, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) mantém o seu poder de mercado intacto, mesmo com a emergência de novos países produtores à margem da organização, como a Rússia?
A OPEP ainda produz cerca de 33 milhões de barris diários e as reservas comprovadas darão para quase 70 anos, ao ritmo de produção actual. Mas precisam de grandes investimentos para conseguir aumentar a produção. A OPEP não tem hoje a força que tinha não só porque a Rússia entrou no mercado com muita força, mas porque, quando falamos de OPEP, estamos a falar de petróleo leve. Pelo lado do petróleo pesado é que as coisas irão mudar. As reservas russas em petróleo leve e, por outro lado, a Venezuela e o Canadá no petróleo pesado, serão os players do futuro e é com esses que tem que se contar. Na Venezuela já estão a operar as principais petrolíferas mundiais.
Mas esse é o petróleo pesado, é mais caro de extrair e de refinar...
Quando digo que a Venezuela será um player do futuro é porque a faixa do rio Orinoco, que tem uma dimensão à volta de dois terços do nosso país, tem reservas imensas. A extracção é mais cara porque exige injecção de vapor de água, o que na situação da Venezuela é o melhor que lhe poderia ter acontecido. Primeiro porque tem no rio Orinoco água com fartura. Depois, porque tem a mega-barragem do Guri, com energia eléctrica que chega e sobra, de origem gratuita, para injectar o vapor e extrair o seu petróleo. Está na melhor posição do mundo para, no futuro, dominar o mercado. À medida que o tempo passa, o petróleo leve irá escasseando e cada vez mais o pesado terá de ser utilizado. Mas não será nunca uma alternativa mais barata. A alternativa com um método de extracção mais caro não irá fazer baixar o preço, irá sim continuar a fazê-lo subir. É essa a tendência de longo prazo.
As inovações tecnológicas na indústria petrolífera, ao nível da extracção e produção de combustíveis, poderão suavizar o declínio das reservas petrolíferas hoje conhecidas? O consumo de petróleo divide-se em 60 por cento para transportes e 40 por cento para produção de energia eléctrica e para a indústria. O que tem vindo a ser feito em termos de inovação é trabalhar nos 40 por cento, uma vez que a produção de energia eléctrica pode ser feita sem recurso ao petróleo. Mas a extracção do petróleo leve é cada vez mais cara e traz problemas ambientais. O Árctico é hoje um grande depósito de petróleo, mas a extracção, que já está a ser feita, tem riscos ambientais e custos elevados.
Para produção de electricidade, a energia nuclear é uma hipótese...
Pode ser nuclear ou eólica. A nuclear tem os seus riscos, mas nós temos na Europa Ocidental 146 reactores. Só na Bélgica há sete, a França tem 59, o Reino Unido tem 31, a Alemanha tem 19 e a Espanha tem nove. É uma alternativa possível. A eólica é aquela pela qual os portugueses enveredaram e, quanto a mim, muito bem, para reduzir o peso do petróleo na produção de electricidade. Pelos números que me chegaram, nós duplicamos num ano a capacidade eólica instalada, estando hoje Portugal classificado em 11º no ranking mundial, com a Alemanha e a Espanha à cabeça. É por aí que podemos trabalhar para reduzir a dependência nos 40 por cento de petróleo consumidos "extra transportes".
Portugal tem andado desatento em termos de política energética? Que razões encontra para a ausência de uma estratégia nacional nos últimos anos num sector tão importante como o da energia? Andámos adormecidos a pensar noutras coisas. Quando nós temos um produto de que dispomos e supomos que não há problema com ele, distraímo-nos. Mas deveríamos ter estado atentos ao choque petrolífero de 1973. Pela leitura do que nos aconteceu nessa altura, com o embargo, as coisas poderiam ter sido tratadas de outra maneira, com mais atenção. Eu estive em missão na África do Sul e tive ocasião de constatar como este país resolveu a sua situação de dependência. Em 1973, ainda tinham o Irão como aliado, uma vez que o xá Reza Pahlevi era um amigo dos sul-africanos e continuou a abastecê-los. Porém, mesmo antes de 73, a África do Sul já havia previsto que alguma perturbação poderia acontecer e optaram por uma alternativa. Como dispunham de quantidades de carvão enormes, adoptaram um sistema para sintetização do carvão e produção de combustíveis sintéticos, para agregar à gasolina. Em qualquer altura têm o país salvo com esse recurso e, na crise de 1979, foi isso mesmo que aconteceu. Eles seguiram por este rumo e outros decidiram de outra forma, pelo nuclear. Nós, por outro lado, não temos pensado muito nisso, temos andado um pouco adormecidos. E isto são problemas que se resolvem apenas a longo prazo, os resultados não são imediatos. Se fizer agora investimento no que quer que seja, só daqui a vários anos é que vai ter o resultado. O que estamos a fazer nas eólicas é óptimo. A produção de energia eléctrica através da energia eólica em Portugal em 1995 era zero e, em 2004, já representava cinco por cento. A produção de energia hídrica é que baixou substancialmente. Nós temos sol, temos vento, temos água e cada país deve recorrer ao que tem. Usar os recursos dos outros... podemos pagar, mas ficamos muito dependentes.
A China e a Índia são realmente os "maus da fita", responsáveis pelo aumento cada vez maior da procura de petróleo?
A China e a Índia representam um terço da população mundial e são países com quem se deve ter um bom relacionamento. Não são os "maus da fita", trata-se apenas de estratégias económicas e geopolíticas. Os EUA consomem cerca de um quarto do petróleo mundial e importam dois terços do que consomem. No meu ponto de vista, o fiel da balança do poder está a desviar-se para o eixo Sino-Russo. Enquanto os russos e os chineses se olhavam de lado, a China desenvolveu-se pelos seus próprios meios. Mas hoje, para continuar o seu desenvolvimento económico, a China tem um défice de cerca de três milhões de barris diários. A negociação para o abastecimento à China e ao Japão (com a Índia as coisas ainda não estão completamente resolvidas) levou 12 anos a ser concluída. Em Janeiro deste ano, o presidente Putin garantiu um oleoduto à China, com um desvio para o mar do Japão. Abastece a China e o Japão, cumprindo a quase totalidade das necessidades chinesas e uma parte mais pequena das japonesas. Graças à Rússia, a China tem hoje todas as condições necessárias para garantir o desenvolvimento económico continuado. Este novo eixo está a sobrepor-se, em interesse, aos países ditos industrializados, que estão a ser relegados para segundo plano.
O que explica uma das chamadas de capa do seu livro, segundo a qual "China e Rússia estão a esmagar o orgulho ocidental"...
A Rússia tem uma capacidade instalada que lhe permite aumentar a produção, ao contrário da Arábia Saudita que tem a capacidade de extracção esgotada (só com novos investimentos é que pode aumentar a produção). O grande desequilíbrio quando falava em Rússia e EUA é que os EUA importam mais de nove milhões de barris diários, enquanto a Rússia exporta quatro milhões, sem ter ainda começado a fornecer à China e ao Japão através do oleoduto em actual construção, que se prevê concluído daqui a dois anos. Quando dizemos que os EUA importam diariamente nove milhões de barris, estamos a falar de 630 milhões de dólares diários. A Rússia recebe contrapartidas de 300 milhões de dólares diários. Além disso, a extracção suplementar de petróleo para a China e para o Japão, assim como os oleodutos, são financiados pelo Japão e pela China, com pouco investimento russo. Os americanos, por outro lado, para garantir o fornecimento ainda têm que pagar a segurança. Ou seja, os custos para os EUA e os benefícios para a Rússia e China têm todos os ingredientes para que a balança do poder se altere, não pela força mas pela economia.
Esse novo oleoduto irá ter influência no mercado?
A Rússia passa a fornecer a China e o Japão, com três milhões de barris diários, deixando de ter margem para compensar quebras de mercado. Nessa altura, é previsível mais um forte abanão nos preços.Como vê a cada vez maior influência, em termos energéticos, da Rússia sobre a União Europeia (UE)?
A UE não tem uma política energética comum. No mosaico de países que constituem a Europa Ocidental, cada um tem o seu problema para resolver. A Grã-Bretanha é auto-suficiente e exporta, assim como a Dinamarca e a Noruega (que é o terceiro exportador mundial). Estes três países estão muito bem. Quando a Rússia fizer alguma pressão serão eventualmente os alemães, que pretendiam um abastecimento russo directo, os mais prejudicados. Nas outras áreas, cada um vai fazendo o que pode. O problema não é global na Europa, cada um tem o seu problema. Uns têm petróleo, outros resolveram por outra via e outros não fizeram coisa nenhuma e esses estão com mais dificuldades.
Tendo em conta que a energia passou a ser uma questão de segurança nacional, e que os EUA já discutem a criação de uma "proto-NATO" para a energia, não é de estranhar o silêncio da União Europeia sobre este assunto?
As discussões no seio da UE são uma coisa muito complexa. Em 2004, a UE produziu 2,5 milhões de barris diários e consumiu 14,5 milhões e meio - teve 12 milhões barris diários de défice. Em gás natural tiveram 255 biliões de metros cúbicos de gás. Mas, nestes números, incluem-se a Dinamarca e a Grã-Bretanha, que não têm problemas. Cada um tem as suas vantagens e dificuldades específicas e vai ser difícil chegar a acordo por causa disso, é uma área muito sensível. Os EUA são estados unidos, criaram-se com várias guerras, entenderam-se e têm um governo central que fala por eles. A UE é um convénio, entenderam prescindir de alguma soberania e conseguir um mercado comum. Depois, os EUA podem ter muito mais urgência que os europeus para agir desta forma, porque têm um problema grave. Não só pelo que têm que pagar pelas importações, mas também porque são quem paga pela segurança do abastecimento.
"Reveja a sua forma de vida"
Em quatro anos, a factura portuguesa da importação de petróleo quase duplicou.
Numa altura em que o barril de petróleo abaixo dos 50 dólares parece ser uma memória de tempos já idos, a dependência de Portugal face a esta fonte de energia significa uma factura grande para pagar. Em 2005, "pela mesma quantidade que importávamos há quatro anos, pagámos cerca do dobro", aponta Caleia Rodrigues. Dos 2,2 mil milhões de euros desembolsados em 2002, Portugal passou para quase quatro mil milhões de euros em 2005. "São vários TGV em cada ano", comenta Caleia Rodrigues. Esta subida dos preços irá obrigar os portugueses - os mais ineficientes na utilização da energia na União Europeia a quinze - a "rever a sua forma de vida". Além do investimento em energias alternativas, Caleia Rodrigues destaca a necessidade de optar por caminhos mais racionais no consumo, num equilíbrio entre conforto e eficiência energética. "Uma alternativa são os transportes públicos, que podem ser alimentados com energia eléctrica", sugere. Contudo, as dificuldades serão grandes. "A educação, leva algum tempo", lembra. "Na nossa estrutura de vida há pessoas a viverem a 50 ou a 60 quilómetros do local de trabalho, vai ser difícil manter uma situação dessas".
[08-05-2006] [ Bruno Faria Lopes, Revista "Dia D", Público (on-line) ]
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